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“As associações de pacientes se tornaram advogadas da indústria farmaceutica”

“As associações de pacientes se tornaram advogadas da indústria farmaceutica”

“As associações de pacientes se tornaram advogadas da indústria farmaceutica”

A canadense Sharon Batt tinha 43 anos quando foi diagnosticada com câncer de mama, em 1988. A notícia foi um choque para Sharon, que se considerava perfeitamente saudável. Encontrar informações sobre os tratamentos a que deveria se submeter, as indicações específicas para cada um e os efeitos colaterais se mostrou um desafio para a então jornalista. À época, Sharon decidiu unir-se a um grupo de mulheres que começava a formar um movimento para reivindicar os direitos dos pacientes. Hoje, aos 72 anos, sobrevivente do câncer de mama e de outros dois – de ovário e de cólon –, Sharon diz não reconhecer mais o movimento a que se unira 30 anos atrás. “As associações de pacientes migraram para a esfera corporativa e se tornaram realmente advogadas dos mesmos interesses da indústria farmacêutica”, diz Sharon.

Em 1999, ela decidiu assumir outro papel, não o de ativista, mas de pesquisadora, e estudar o fenômeno. Desde então, analisa a influência da indústria farmacêutica sobre políticas de saúde pela Universidade Dalhousie, na Nova Escócia, uma das dez províncias que formam o Canadá. O resultado dos anos de pesquisa, mesclado com sua experiência pessoal à frente de associações de pacientes canadenses, virou o livro Health advocacy inc (sem edição no Brasil), em que revela como a indústria farmacêutica financia associações de pacientes para pressionar o governo a comprar seus tratamentos cada vez mais caros. “Financiados pela indústria, os grupos de pacientes fazem ações de ‘conscientização’ que acabam promovendo essas novas drogas entre os pacientes e pressionando os políticos”, afirma Sharon.


Em muitos casos, não há evidências de que os novos tratamentos sejam realmente eficazes. Em um estudo, o oncologista americano Vinay Prasad, professor da Universidade de Ciências Médicas do Oregon, analisou 36 medicamentos aprovados para câncer entre 2008 e 2012 com base em estudos iniciais. Todos sugeriam que a droga era capaz de diminuir os tumores. Mas, quando se continuou a acompanhar os pacientes por anos, apenas cinco mostraram, de fato, prolongar a vida. Isso significa que milhões podem ter sido desperdiçados em tratamentos que produziram melhoras insignificantes, um grave caso de saúde pública quando as compras são feitas pelo governo. Ainda há o risco de os pacientes se exporem a mais riscos do que benefícios. Em seu livro, Sharon conta o caso de uma droga promovida por um grupo de pacientes canadense, financiado por uma empresa, que mais tarde mostrou acelerar o crescimento de tumores.


O problema se repete com associações que defendem pacientes com vários tipos de doença, não só câncer – e não é exclusivo do Canadá. Acontece em outros países, inclusive no Brasil. Sharon alerta para as consequências da influência corporativa sobre os grupos: além de colocar pacientes em risco, ao promover tratamentos que podem oferecer riscos ainda não descobertos, a pressão pela incorporaçãode drogas caríssimas deforma o sistema de saúde. “Se temos um sistema de saúde de que todo mundo depende, é preciso valorizá-lo e decidir como gastar o dinheiro adequadamente”, afirma Sharon.


É uma situação parecida com a judicialização da saúde que acontece no Brasil: quando pacientes acionam judicialmente o governo para pagar por tratamentos caríssimos – que muitas vezes não são curativos ou ainda nem estão aprovados no Brasil –, acabam desequilibrando o orçamento de saúde. As compras são feitas isoladamente, o que faz com que o governo pague mais caro pelo tratamento, e comprometem o planejamento de gastos feito para atender todas as demais pessoas pelo sistema de saúde público. A angústia e o sofrimento dos pacientes são compreensíveis. A preocupação com a viabilidade financeira do sistema de saúde também. Uma equação difícil de resolver e da qual muitas empresas se aproveitam.


Sharon convida a todos, especialmente os encarregados das decisões de saúde pública, a refletir a cada vez que se sentirem tocados pelas reivindicações de associações de pacientes. “Eles sempre devem perguntar se a organização é financiada pela indústria farmacêutica. Caso sim, não deveriam aceitar sua representação ou, no mínimo, ouvir outras fontes também”, afirma Sharon. Leia a entrevista a seguir:


ÉPOCA – Baseada em sua pesquisa e experiência pessoal, a senhora diz que associações de pacientes do Canadá mudaram nos últimos 30 anos. Como e por quê?

Sharon Batt – No início dos anos 1990, quando ingressei no movimento de pacientes com câncer de mama, tínhamos todos os tipos de preocupação: como os médicos conversavam com as pacientes e se a comunicação era boa, se havia a ênfase adequada em prevenção de câncer, se existiam pesquisas que relacionavam substâncias no ambiente ao aparecimento de câncer, queríamos saber se a incidência da doença estava aumentando e quais eram os efeitos colaterais das drogas usadas no tratamento, que costumam ser bastante tóxicas. O movimento era bastante independente da indústria farmacêutica. No final dos anos 1990, conforme o tempo foi passando, os grupos se tornaram mais ativos e com mais demandas, e não tinham dinheiro suficiente. Para fazer mais trabalhos, eles começaram a se voltar para as empresas. Mais e mais grupos passaram a aceitar dinheiro da indústria. Se antes eram muito conectados as suas comunidades locais, migraram para a esfera corporativa e se tornaram realmente advogados dos mesmos interesses da indústria farmacêutica – que nem sempre servem aos interesses do público.

ÉPOCA – Qual é a influência das empresas quando financiam o trabalho das associações de pacientes?

Sharon – A empresa desenvolve esses medicamentos cada vez mais caros e precisa encorajar a demanda. Sempre que chegam até os grupos para oferecer financiamento é porque estão lançando uma nova droga. Há sempre uma agenda oculta. As empresas nunca dirão que estão promovendo uma droga, mas sim conscientização sobre a doença. Elas fazem demandas para as organizações, como promover a semana nacional da doença X ou mandar questionários aos associados perguntando a eles se já sentiram alguns sintomas e lhes recomendando que perguntem a seus médicos como tratá-los. Outra estratégia é escolher uma boa história, de um paciente que está desesperado: uma mulher jovem com câncer de mama, que tem filhos novos e cuja doença está avançada. Eles mostram que há uma nova droga, que talvez a ajude – ainda que saibam que as evidências são incompletas e que a droga custa muito dinheiro. Eles são muito bons em ajudar a divulgar essas histórias.

ÉPOCA – Por que essa influência é um problema?

Sharon – Nós tivemos casos em que organizações de pacientes promoveram alguns tratamentos cujas evidências eram, no mínimo, incompletas e que mostraram que, no final, os pacientes morreram antes ou morreram com mais efeitos colaterais e mais sofrimento. O caso mais grave que cito no livro foi de um grupo de pacientes que recebeu fundos de uma empresa e se comprometeu em atividades para encorajar o uso da droga da empresa. O medicamento era destinado ao tratamento da anemia, uma deficiência da produção de glóbulos vermelhos do sangue que, às vezes, acomete pacientes com câncer. A anemia pode provocar a sensação de cansaço, algo que é muito frequente nas pessoas em tratamento porque as drogas são fortes. O problema é que o grupo, financiado pela empresa, começou a fazer o que eles chamam de “educar” seus membros, avisando que havia um droga para eles, caso tivessem anemia ou estivessem se sentindo cansados. Eles estenderam a indicação da droga, que era aprovada para anemia e não para tratar fadiga. Acontece que, ao impulsionar a produção de células vermelhas, o medicamento também promovia o crescimento de tumores. Ou seja: dar essa droga para pacientes com câncer estimulava os tumores e fazia os pacientes morrer mais cedo. Esse efeito colateral ainda não tinha aparecido nos estudos, à época em que a empresa estava pagando os grupos para promover as drogas. Depois, saíram as pesquisas e o grupo nunca publicou nada em seus canais de comunicação, dizendo que tinha errado ou que não deveria ter feito aquilo.

ÉPOCA – No Brasil, quando os pacientes pedem acesso a drogas caras, todo o sistema de saúde é afetado: os pedidos feitos na Justiça geram gastos inesperados e comprometem o orçamento da saúde para todas as doenças. Isso acontece no Canadá?

Sharon – Sim, mas os pacientes, instigados pelas associações das doenças, não acionam o Judiciário, como acontece no Brasil. Eles pressionam os políticos pela mídia, mostrando as reportagens daqueles pacientes muito doentes que poderiam ser salvos. No Canadá, temos um sistema universal de saúde, em que cada província estabelece uma lista de drogas financiadas pelos governos, que decidem que drogas serão incluídas ou não. Os políticos ficam em uma situação muito difícil se recusam o apelo de um paciente que recebeu muita atenção da mídia e há um grupo falando que aquela droga poderia salvá-lo – ainda que fique claro que as empresas estão trabalhando com os grupos de pacientes. Se temos um sistema de saúde do qual todo mundo depende, é preciso valorizá-lo e decidir como gastar o dinheiro adequadamente. Não vejo esse tipo de perspectiva crítica vindo desses grupos: “Não deveríamos defender uma droga muito cara que bem sabemos se realmente útil e se é a melhor maneira de o governo gastar o dinheiro”. Se eles realmente estão promovendo o interesse dos pacientes, precisam ter uma visão mais abrangente e perceber que há momentos em que o paciente está muito doente e realmente não há mais tratamento.

ÉPOCA – As associações de pacientes se tornaram grupos de lobby?

Sharon – Eles se veem como lobby, mas a favor do interesse dos pacientes. Muitos perceberam que deveriam falar dos altos custos dessas drogas e se distinguir mais da indústria farmacêutica. Mas se tornaram dependentes. Há salários essencialmente pagos pelo dinheiro que vem da indústria. Os grupos não veem nenhuma outra maneira de levantar a mesma quantia de dinheiro. A relação entre associações de pacientes e indústria farmacêutica se tornaram bastante amigáveis. Os grupos incorporaram valores e maneiras de funcionar que dependem do dinheiro da indústria. As pessoas falam comigo sobre como vão a jantares muito caros, com muito vinho, como voam para congressos e conferências. É um outro mundo, muito encantador. As pessoas falam como a pessoa de tal empresa foi muito legal, como estão desenvolvendo uma amizade. Mas esse é o trabalho dos funcionários da indústria: eles são contratados para encantar. É muito similar com o que as empresas farmacêuticas fazem com os médicos, para que prescrevam suas drogas.

ÉPOCA – Há alguma circunstância em que é aceitável para uma associação de paciente receber dinheiro da indústria?

Sharon – Nunca é aceitável. O propósito do grupo é sempre trabalhar em prol dos pacientes e o da indústria farmacêutica é fazer dinheiro para os acionistas. São propósitos diferentes e estão, obviamente, em conflito.

ÉPOCA – Os pacientes são importantes na elaboração de políticas públicas. É possível diminuir a influência da indústria sobre esses grupos?

Sharon – As fontes de financiamento desses grupos deveriam ser obrigatoriamente reveladas. Hoje, é opcional. Mas esse passo ainda é muito preliminar porque o público ainda pode pensar que os grupos estão livres de influência simplesmente porque são transparentes sobre seus fundos. É preciso haver outras fontes de financiamento, que sejam verdadeiramente independentes. O governo também deveria fiscalizar as afirmações e reivindicações que esses grupos fazem, assim como eles fiscalizam o que a indústria pode ou não anunciar sobre seus produtos. Hoje, as associações podem falar que a droga é “possivelmente uma cura” ou “muito melhor do que a antiga”, sem evidências científicas e sem que ninguém as penalize pela divulgação de informações tendenciosas. As associações de pacientes deveriam sofrer penas como a indústria em caso de propaganda enganosa. Do contrário, a indústria sempre estará tentada a infundir essas afirmações sem provas por meio dos grupos de pacientes.

Fonte: http://epoca.globo.com